top of page
  • Foto do escritorAndrei Moscheto

Reencarnando sob demanda

Atualizado: 14 de abr. de 2023


A direita um homem, a esquerda uma mulher. Ela parece muito velha, ele parece cadavérico - seu rosto é uma cabeira, que tem os cabelos brancos laterais de um senhor de muita idade. Na frente do homem rosas parecem ser carregadas da sua mão esquerda ou surgirem do centro do seu corpo e ele carrega uma valise. Ela tem flores e grinalda na cabeça e um colar escuro no pesçoco.
feito por inteligência artifical no Midjourney

Álvaro não sabia como tinha chego nessa sala de espera, mas estava lá. Disso ele tinha certeza. Talvez. No canto esquerdo uma televisão ficava pipocando entre canais, sem parar. Na sua frente muitos guichês, desses que a gente senta de frente a quem nos atende. Um símbolo apareceu no ar e Álvaro conferiu que era o seu. Se levantou e, sem entender como ele estava entendendo o quê fazer, se sentou na cadeira vazia.

- Olá.

- Oi, será que eu posso...?

- Já te atendo, só um segundo. Só terminando de colocar um detalhes aqui do último que sentou e... pronto. Resolvido. Então... Álvaro! Vamos começar do começo. Vamos continuar com Álvaro nesta próxima vida?

- Próxima o quê?

- Nesta próxima vida. Vamos, Álvaro, me entenda rápido porque temos bilhões de pessoas por aqui. E não é figura de linguagem.

- Mas eu... morri?

Assustado, ele olha fixamente pra atendente, que parecia uma burocrata regular. Quando olhou pra trás ele viu que as filas de cadeira de espera pareciam se estender ao infinito, todas ocupadas por pessoas das mais diferentes etnias.

- Bom, essa não é a sua primeira vez nesta sala. Sei que está processando o que está acontecendo, mas eu realmente vou ter que ir para a próxima pessoa em instantes. Vou considerar que a sua resposta, pra primeira pergunta, é "Álvaro" mesmo. Tudo bem, até porque a fase "Alvito" foi a dois ciclos atrás.

- Eu... tô... reencarnando?

- Isso.

- Mas eu sou católico!

- Exato, tá dizendo isso aqui. Quer mudar, nessa próxima vida?

- Como católico, eu não acredito em reencarnação... Acho.

- É que a vida não acontece porque se acredita ou não em algo, né? Ela tem essa mania de apenas acontecer, e a gente se adapta.

- Então... eu tô reencarnando mesmo?

- Isso. Posso fazer a próxima pergunta? Senão, vou marcar tudo "sim", na primeira opção, e te mandar de volta pra Terra já.

Tentando se recompor, Álvaro puxou o ar para se acalmar. Por um segundo, fez a si mesmo a pergunta metafísica "se estou morto e vou reencarnar, então não é possível que eu esteja puxando algum ar, porque nesse plano metafísico isso seria...", mas desistiu dessa inquietação para focar nas respostas ao questionário sobre sua próxima vida.

- Pode perguntar. Tô pronto.

- Ótimo. Você quer mudar de religião? Tem umas boas perto da sua casa, ou podemos até receber umas influências online nos dias de hoje.

- Não, pode manter a mesma.

- Ok... Vamos lá: alergia a comidas. Como você prefere sofrer daqui pra frente?

- Posso escolher "não ter alergia a comidas"?

- Não pode, não. Neste ciclo você vai ter que pegar uma... Espera, deixa eu ver aqui no seu histórico... Não, rapaz! Você não se cuida mesmo, hein? Vamos ter que pegar três.

- Três? Mas eu não quero.

- Não é querer, é que vai ter que pegar nesse ciclo.

- Que ciclo?

- Esse agora seu, 48/59.

- Esse código é alguma área da Terra?

- Não, é sua idade. Quarenta e nove anos até cinquenta e seis, quando nos veremos de novo.

-...eu tô reencarnando em vida?

- Claro!

A atendente olha pro atendente da direita pra comentar:

- Caiu pra mim um desses "católicos" que acha que a pessoa morre pra reencarnar!

- Isso não é nada, acabei de lidar com um budista que queria entrevistar todo mundo da sala.

A perplexidade de Álvaro perante aquela conversa só aumentava.

- Moça, eu já reencarnei antes?

- Sim, diversas vezes. Só agora que eu vi, na sua ficha, a observação de uma colega dizendo "tome cuidado, ele se espanta excessivamente com a plenitude da Zona Imaterial".

- Zona Imaterial? Esse é o nome? Eu vou me lembrar disso?

- Não sei, Álvaro. Só sei que eu preciso fazer o meu trabalho e, se você acordar lá embaixo pro seu aniversário de 48 anos sem a gente ter decidido tudo, você vai ser absolutamente igual pelo próximo ciclo.

- Ok! Vou me controlar. Pode falar.

- As alergias, Álvaro.

- Ah, sim! É... alergia a jiló, chá de losna e... Cérebro de cabra.

- Querido, vocês sempre tentam essa comigo. Bom, não posso mais enrolar, vai tomar um "frutos do mar", pra deixar de ser besta!

- Ah não!

- Próxima pergunta: gosto musical.

- Bom, eu queria continuar gostando de rock dos anos 70 e...

- Não, não. Você, na Terra, decide do que gostar. A gente aqui vai decidir do que você não gosta e o quanto você reclama disso.

- Quais são as minhas opções?

- Pelo que eu vi na sua ficha, no ciclo passado você já começou a desgostar de coisas novas. Quer manter a mesma pegada, quem sabe aumentar a raiva com comentários sobre "no meu tempo a música era melhor"?

- Pode ser, mas... Será que poderia ter uma exceção?

- Qual

- É que a minha sobrinha gosta de K-Pop. Será que eu posso curtir, só pra ter algo pra falar com ela?

- Pode, vou colocar aqui essa observação. Próximo tópico: de quem é "a culpa"? - e a burocrata realmente fez as aspas no ar.

- Do quê?

- De tudo.

- Não entendi.

- Nesse ciclo, vocês tendem a culpabilizar tudo nas costas de alguém ou alguma coisa. Pelo que eu tô vendo, na sua vida, você não tem leitura ou convívio social para tirar você dessa conclusão. Então, quem tem "a culpa" de tudo de errado que está acontecendo?

- Eu... não sei.

- Você quer umas opções, condizentes com a sua família e comunidade próxima?

- Acho que, infelizmente, sim.

- Bom, no seu país é muito comum culpar partido político.

- Não, isso dá confusão demais.

- Tem aqui "imigrantes".

- Credo, quem escolheu isso?

- Deixa eu ver... Metade das pessoas do seu prédio.

- Tudo isso?

- Mais da metade escolheu o formato mais abrangente, que é "qualquer etnia que não seja a minha".

- Que coisa difícil...

- Bom, a opção mais caricata, que combina com você, é botar "a culpa" nos jovens, no geral. É mais sobre responsabilidades do que sobre fenótipo genético.

- Pode ser.. Com a exceção a minha sobrinha!

- Tá forçando a amizade, Álvaro. Mas tá bom. Tá feito. Último ponto a ser definido neste ciclo: o amor.

- Amor?

- É. Amor, relacionamento, casamento, essas coisas.

- Tá. Tá bem. Eu escolho...

- Vocês escolhem.

- Vocês quem?

Álvaro sentiu uma mão no ombro e olhou pro lado. Era a sua esposa, que estava preenchendo sua ficha no guichê do lado.

- Oi Alvinho!

Ele olhou para ela e parecia ver, ao mesmo tempo: a mulher que conheceu, a mulher com quem se casou, a mulher no hospital que teve seus dois filhos, a mulher no hospital com quem recebeu a notícia da morte do caçula num acidente de carro, a mulher com quem brigou sobre as coisas mais bestas e as mais profundas, porque ela era todas elas e era apenas ela.

- Oi Carmenzinha! O que você tá fazendo aqui? Não tem 48 ainda.

- Nós reencarnamos mais vezes que vocês. E eles me adiantaram para encaixar com o seu dia, assim a gente decidia isso.

- O que é pra gente decidir?

- Se ficamos mais um ciclo, juntos.

- Aqui? Assim? Numa marcada de caneta?

- Não, não, não. - disse a burocrata, atenta a conversa - Vocês marca aqui a intenção que vocês terão nesse próximo ciclo. Se vocês vão conseguir é outra coisa.

- Carmen, eu...

- Sim?

- Eu... Ficaria muito feliz se você decidisse passar mais um ciclo de vida junto comigo.

- Alvinho... Eu aceito.

Álvaro sorriu e beijou Carmen. Por um momento todas as versões dos dois, de todos os ciclos anteriores e seguintes, se beijaram.

- Mas, tem uma condição.

- Diga.

- Você parar de peidar na frente das visitas.

Os dois olharam para a burocrata, que respondeu:

- Essa decisão está em aberto, na vida. Não posso fazer nada.

- Eu aceito, Carmen. Mais um beijinho de muitas vidas?


***


- Acorda, Álvaro!

- Oi? Quê?

- Feliz 48, Alvinho.

- ...Opa. Obrigado, amor.

Ele sentou na cama, contente de lembrar que era seu aniversário. Talvez por isso a noite tivesse sido tão tumultuada de pesadelos estranhos, nenhum que ele conseguisse lembrar agora. Deixe pra lá, nunca se lembrava disso mesmo! Logo a casa teria parentes em todos os cantos, a irmã iria chegar com pudim e aquele cunhado folgado, mas pelo menos a pequena Jay viria junto. Ela ensinaria uma dancinha de Tik tok que ele seria péssimo, ela riria disso.

- Teu filho chega de tarde, depois do almoço, que ele tinha jogo de manhã.

- Poxa, não podia desmarcar hoje?

- É quartas de final de alguma coisa da escola, Álvaro.

- Esses moleques, a prioridade deles não tá no lugar certo.

- Álvaro, menos.

- Não é só ele, é toda essa geração! Inacreditável.

- Tá bom. Escuta...

Carmen fez aquela cara séria, em que ela primeiro olhava pra baixo, falava a coisa bem grave, e depois levantava os olhos para ver se ele concordava.

- Hoje vai ser um dia bem legal, com um monte de pessoas que a gente gosta, celebrando um novo ciclo da sua vida... Por favor, por tudo que é sagrado: se segura pra não ficar peidando na frente de todo mundo?

Só depois de "todo mundo" que ela levantou os olhos para ele.

- Minha Carmenzinha...

Ele fez cara de sério, pra abrir um sorrisão dizendo:

- Eu prometo que não vou peidar, em especial na frente da sua mãe. Vou pedir pra pequena Jay não ficar mais brincando de puxar o meu dedo.

- Agradeço! Muito.

- Até porque hoje nem vai ter feijão, né?

- Não, hoje é o seu pedido especial de aniversário, que o seu cunhado preparou com carinho e vai te trazer.

- O que é?

- Camarão na moranga!

- Delícia! Esse é light, nem vai dar problema... Né?


63 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page