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  • Foto do escritorAndrei Moscheto

Manual Básico de Mulher

Um sujeito de cavanhaque, por volta dos trinta e poucos anos, boa forma, calça jeans escura, uma camisa branca com os botões de cima abertos meticulosamente descolado, um blazer preto com um corte moderno, sobe ao palco. Ele vai para o foco de luz, do lado direito, segurando um microfone sem fio dourado


- Cavalheiros: sejam bem-vindos ao final de semana que irá transformar as suas vidas!


A plateia, composta por uns seiscentos homens, urrava de alegria. Era possível sentir a excitação no ar e não era pra menos. Todos tinham chegado ali com uma promessa: depois dessa palestra, nenhuma mulher resistiria a eles.


Tadeu é carteiro, 26 anos. Ao procurar tutorial de descarga desregulada no YouTube, se deparou com a propaganda, que prometia as cantadas perfeitas.


Fernando é programador, 39 anos. Alguém do redditt falou pra ele do curso, dentro de um chat em que reclamam de mulheres duma maneira geral.


Lucas, 19, é candidato a influencer. Viu no TikTok.


Walter, 56, é recém divorciado. Ele não se interessou pela cantada perfeita, muito mais pelo entendimento completo de como são as mulheres. Quem sabe, com esse curso, ele finalmente entenderia porque Camila tinha saído de casa para ficar com um sujeito muito mais feio que ele.


O sujeito no palco é chamado Samuca, cujo nome real que aparece no perfil do Linkedin é Samuel. Ele disse num dos vídeos gratuitos na internet, para atrair seus clientes:


- Nome bíblico não é bom quando o que você quer fazer com elas são os piores pecados - e ria (dica que foi notada pelo Lucas, que imediatamente mudou seu nick para LukkaZ).


O tal Samuca fez a pausa, aguardou o alvoroço diminuir e diz, com cara de preocupado.


- Todos vocês, que estão nesse auditório, já sofreram demais nas mãos dessas megeras, não é?


Os homens concordam, o Walter com um pouco mais de veemência.


- Então, chegou a hora de contra-atacar! Mas, pra isso, é preciso ter coragem. Vocês tem coragem?


Um urro veio da plateia, mas Fernando não fez muita questão - tinha medo de arranhar a garganta e ele tinha um podcast pra gravar mais tarde.


- Para aprender o que eu tenho para ensinar vocês precisam estar preparados para dizer, com todas as letras: mulheres são seres inferiores, mulheres são repugnantes, mulheres servem apenas para nos servir.


Tadeu, que tinha pensando que veria uma encenações com umas frases boas, tipo "Doeu muito quando você caiu do céu?" começou a se incomodar profundamente. Num dos momentos em que Samuca agitou o povo a se levantar ele usou de desculpa para ir ao banheiro e foi embora.


- Quando a gente terminar, vocês serão deuses perante todas elas!


Esse era um dos sonhos de Fernando. Ele tinha um personagem de RPG com carisma altíssimo que ele usava para transar em jogos online - para desespero das jogadoras, que abandonavam a plataforma para não ser importunadas pelo MeSoSexy_BR_83.


- Vocês farão delas gato e sapato.


Walter queria apenas aparecer uma novinha linda, sem cara de prostituta, no casamento do filho no mês que vem. Ele sonhava com a inveja dos amigos e com o desespero da ex-mulher que foi se amarrar com o feioso. E mais baixo. E com emprego pior.


- Então, o segredo só será revelado para aqueles que, como eu, tem a coragem de gritar: morram as mulheres!


Nessa hora, LukkaZ travou. A mãe era mulher, a irmã também, e elas eram parte importante da equipe de filmagem do perfil. Ele achou melhor ir embora, sem nunca contar pra ninguém que esteve ali.


Fernando gritou. Dane-se o podcast, essa era a vida que sempre quis.


Walter gritou, achando tudo muito engraçado.


Muitos gritaram, outros saíram.


- Vejam, cavalheiros, esses que estão saindo são os que não serão competição para vocês nesta vida.


Os que permaneceram riram. Assim que o último desistente saiu, as portas do auditório foram lacradas por dentro, cobertas com cortinas anti ruído. Samuca fez um gesto para os remanescentes (um terço do grupo original) se aproximassem.


- Parabéns, cavalheiros. Vocês agora terão acesso ao chip revolucionário que apenas homens, como vocês, merecem. Vocês nunca precisarão fazer nada diferente, apenas continuem vivendo as suas vidas, e as mulheres terão certeza de quem vocês são.


Uma fila se formou em frente ao palco e, um a um, homens felizes eram injetados com um chip no ombro direito.


Fernando estava exultante. Ele sempre soube da existência desse chip, era óbvio que uma tecnologia assim já existia. Apostava que eram produzidos pelo Elon.


Walter não entendeu metade, mas estava feliz de saber que a culpa nunca foi dele. Ele estava planejando levar o chip pra passear já de noite, em alguma balada da cidade.


Todos os injetados saíram felizes, cumprimentando Samuca. Apenas uma das portas foi aberta, permitindo ao homens confiantes saíssem um por um, não sem antes assinar um termo de confidencialidade, o que os proibia de contar ao mundo externo o que havia ocorrido.


Quando o último saiu, a porta foi fechada de novo. Os seguranças do evento começaram a vasculhar cada cadeira e centímetro quadrado do espaço, garantindo que não havia mais ninguém, que não havia nada esquecido, que o espaço estivesse meticulosamente limpo.


- Tudo certo, chefe!


O palestrante tirou o blazer, apoiou numa das cadeiras e, com bastante cuidado, começou a tirar o cavanhaque postiço do rosto do rosto.


- Quanto foram hoje, Flavinho?


- Cento e setenta e oito. Todos afirmativos no sistema, sem falhas.


- Maravilhoso. Hoje é seu último dia?


- Sim, senhora. Finalmente!


Já sem o cavanhaque e com o cabelo solto, Melinda tira um pacote de lenços umedecidos do bolso para tirar a maquiagem. Ela lembra de quando começou a fazer o drag king Samuca de farra, em festas das faculdade. Logo reparou que, não importava o tamanho do absurdo que dizia, ainda alguns homens vinham conversar com ele pedindo conselhos.


- E quem vai assumir, na rotatividade?


- O Carlos, ali. Ele se arrependeu há mais de três anos, tá conosco há um e meio e tem se comportado como um ser humano decente desde então.


- Então, chega aqui.


Os outros seguranças sorriram e começaram a se aproximar, fazendo um círculo ao redor de Flavinho e Melinda.


Ela, que fazia ciência da computação, teve a ideia de um aplicativo para ajudar mulheres a ficarem longe de homens abusivos. Mas não bastava uma acusação, era preciso algo mais, alguma prova da potencialidade de perigo de cada um desses sujeitos, separar os falastrões dos realmente perigosos. Aí veio a ideia do curso. A aceitação foi fácil demais, na opinião dela. Era impressionante como homens realmente aceitassem que mulheres pudessem ter respostas padrões e fáceis de serem percebidas. A ideia do chip veio de outra amiga, a produção em escala veio depois de diversos acordos fossem feito, por baixo do pano, com mulheres que estavam em cargos de chefia de grandes empresas.


Melinda abre uma maleta, com a sua impressão digital. Dela tira uma espécie de pistola, que posiciona no ombro direito de Flavinho. Ele sorri. Ela aperta a pistola e uma marquinha de queimado aparece em sua pele. Outros seguranças tiram seus casacos e exibem, com orgulho, as suas marquinhas.


- Bem-vindo de volta aos humanos, Flavinho.


Os marcados abraçam o novo libertado do chip. Carlos olha a tudo, ainda meio atônito.


- Logo você também vai ter essa sensação de liberdade, Carlos. Uma sensação que toda mulher também precisa sentir perto de cada um de vocês.


- Obrigado, Meli...


- Você me chama de senhora, quando eu estiver sem o cavanhaque, ou de Samuca, pra não botar o disfarce a perigo. Entendido?


- Sim, senhora.


No mesmo dia em que é aplicado, o chip já começa a fazer efeito.


Walter encontra a sua "balada", mas já na porta o segurança barra, dizendo que não tem lugar pra ele. Walter não entende, procura a próxima e a mesma coisa acontece. Ao tentar usar um aplicativo de relacionamento, o app não permite que ele crie um perfil. No desespero ele chega a enviar uma mensagem pra Camila, que só responde com um emblemático "Eu sempre soube" e depois mais nada. Apenas o silêncio de um contato bloqueado.


Fernando tenta logar no seu RPG e descobre que foi bloqueado. Todas as vezes que ele tenta logar no chat room em que eles costumam gravar o podcast remotamente a conexão dele trava. Ele recebe um e-mail dizendo que, a partir de segunda, a empresa exigirá que ele trabalhe de casa, enquanto eles pensam se manterão o contrato em vigor.


Ambos começarão a receber uma emblemática mensagem, diariamente, que apenas diz: E aí, já entendeu como uma mulher funciona?


Esse é o primeiro passo de um longo processo de reciclagem que os espera.

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