Eita, Valdemarzão!
- Andrei Moscheto
- 7 de jan. de 2023
- 5 min de leitura
Atualizado: 10 de jan. de 2023
- Tá de sacanagem? Aqui é macho, cara.
Valdemar nunca respeitou essas coisas de bandeira vermelha fincada na praia. Em todos esses anos que passava a temporada de verão naquela prainha, nunca tinha acontecido um ai com ele. Já tinha vindo como filho, como marido, pai de três e estava de volta como avô de duas. Sempre com aquele queimado no pescoço e no braço, deixando aquela marca de camiseta embranquecida no corpo. Eram só duas semanas por ano em que relaxava, bebia o que podia, comia a vontade, via umas bundas, brigava quando perdia na cacheta, arrotava alto e dizia rindo "o porco tá vivo!", para nojo e desaprovação da esposa, para risada das netas.
Então, mesmo com os pedidos do filho de não entrar logo ali, vem mais pra cá, olha o exemplo que tá dando pras meninas, Valdemar disse que só ia molhar os pés logo ali. Ele teve que desviar a bandeira vermelha, que estava bem no caminho, para entrar no mar. Como sempre fez. O plano do velho queimado era apenas dar um mergulho rápido e ir pra casa, tomar umas que estavam na bandeja logo abaixo do freezer da velha geladeira. Infelizmente, faltou combinar com o mar.
- Valdemar?
Ele acordou num susto e viu a pessoa irreconhecível em sua frente.
- Você... Você é...?
- Depende de quem me olha. Tem uns que me chamam de Iemanjá, outros de Poseidon, alguns de Akuanduba. Semana passada um nerdola me chamou de Aquaman. Eu não me importo, acho que "gênero flúido" combina com a minha personalidade.
- Mas o que é isso?
- É o que acontece com afogados, eu faço a passagem.
- Afogado?
- Afogado.
- Afogado?
- Afogado.
- Afo...?
- Você não entende português ou é só o choque do falecimento mesmo?
- Não, eu não posso, não hoje que...
- Você tinha duas cervejas na bandejinha embaixo do freezer? Infelizmente, Valdemar, é bem normal as pessoas que se afogam estarem com outros planos de vida.
- Mas... Não.
- Bom, ainda quando a pessoa é pega por uma tempestade, quando é um acidente, eu até fico com pena. Consolo, dô ombro, colo, pacote maternal e paternal completo. Quando é alguém que entrou numa área que já indicava perigo, eu só arrasto mesmo. Vem!
Iemanjá pegou Valdemar pelo braço (foi o único nome que ele entendeu daquele lista estranha - se lembrou de ver as pessoas colocando barquinhos no mar, quando era criança, e de ter feito comentários preconceituosos pros amigos) e foi levando ele mais pro fundo.
- Eu... Não tive a intenção.
- De morrer? Claro, Valdemar, todo mundo vai saber disso.
- Mas, a minha família. Eles...
- Vão dar um jeito. A vida segue seu fluxo. A morte faz parte, você já vai entender.
- Eu... Morri... De burrice?
A deusa tinha força e poder suficiente para continuar arrastando aquela alma humana com facilidade para o fundo. Mas hoje, naquele momento, ela decidiu parar e olhar Valdemar com carinho e tranquilidade, a paciência de quem já levou milhões, de quem levará milhões, de quem é porque sempre foi e sempre será.
- Valdemar, eu prometo que não mentirei em nenhuma pergunta sua. Você morreu de uma forma que poderia ter sido evitada, era só ter ido um pouco mais por lado na praia.
- Que azar...
- Não foi só azar.
- Claro que foi, a primeira vez que dá isso.
Iemanjá riu alto, tão gostoso, que golfinhos apareceram e vieram se aconchegar nela.
- Você nem lembra quantas vezes quase morreu?
- Você tá falando na vinda pra praia, quando eu tava correndo? Ah, mas aquilo nem foi nada, a minha mulher é que é muito escandalosa. Não posso nem passar por um acostamento que ela já fica...
- Essas, longe do mar, eu nunca tive acesso, Valdemar. Mas eu lembro dessas aqui.
Os olhos da deusa brilharam e Valdemar agora via as memórias da deusa e as suas próprias. Viu quando era pequeno e entrou mais fundo no mar, quando uma onda jogou ele rolando pra areia e quase bateu seu pescoço numa pedra. Viu quando, bêbado, passou mal dentro d'água e só não morreu porque um cunhado estava perto e puxou ele. Viu quando, numa brincadeira, levou a neta muito pequena pra água e quase que ambos se afogaram quando ele parou de olhar para as ondas que surgiam. Viu, numa sequência muita rápida, muitos quases e atitudes perigosas que poderiam ter levado a morte muito mais cedo.
- Eu não sabia.
- Sabia sim.
- Não, eu...
- Valdemar, nesse momento você não precisa mais fingir que você não sente medo. Eu já levei vários homens duros comigo, pessoas que acham que tomar atitudes agressivas e sem nexo faz parte de ser "HOMEM" (quando Iemanjá falou a palavra "homem", seu corpo se transformou por um segundo num corpo de halterofilista, usando um boné, com uma grande barba e bigode, um calção marcando uma genital imensa, uma camiseta regata com a frase "Mulher é um saco!", um relógio de pulso maior que a mão, uma bota militar - para, logo depois, voltar a ser Iemanjá), mas agora acabou. Aqui você não precisa ser agressivo o tempo todo. Aqui você pode se permitir.
- E a minha família?
- Passado o choque de hoje e o luto dos próximos dias, acho que passarão bem.
- Espero que se lembrem de mim com carinho.
- Vão sim, você será por muitas décadas, lembrando com um exemplo.
- Mesmo?
- Sim! Por gerações, quando alguém estiver fazendo algo estúpido ou grosseiro demais, provocando incômodo ao redor, as pessoas vão dizer "Eita, Valdemarzão!" e certas atitudes vão deixar de feitas.
- Isso não é o jeito que eu queria que família lembrasse de mim!
- Não só a família, o país. "Eita, Valdemarzão!" é uma expressão popular que todos vão falar. Sua neta vai começar a colocar na rede social dela e, em semanas, a expressão pega e fica.
- Celular é coisa maldita, mesmo! Onde já se viu?
- Fique orgulhoso, Valdemar! Sua neta vai num programa de tevê falar como a expressão surgiu na internet e teremos muitas pessoas emocionadas que vão compartilhar relatos. Todo mundo vai usar "Eita, Valdemarzão!" para impedir acidentes de praia, brigas de trânsito, vai fazer muito bem vários homens entenderem que não precisam se comportar como você. Até quando alguém mandar fake news pelo celular vão usar "Eita, Valdemarzão!" pra impedir a pessoa de repetir o comportamento.
- Credo, que vergonha.
- Valdemar...
Ele olhou a deusa, que tinha uma expressão de carinho e doçura no seu olhar, apoiada ainda mais pelos golfinhos que nadavam ao seu redor.
- O mundo vai ficar um pouco melhor porque o seu mal exemplo ressoa pela eternidade.
- ...Tá.
- Podemos continuar?
- Podemos.
- Então vamos.
- Tenho que ir, né? Quando a mulher manda, a gente só pode obedecer, né?
O golfinho soltou um barulho pela boca e Valdemar escutou com clareza, quase como se fosse uma frase. Iemanjá riu, tentando disfarçar, mas não conseguiu.
- Ele disse alguma coisa engraçada?
- Sim. Ele disse, sim.
- O quê?
- ...Eita, Valdemarzão!
- Aposto que é um golfinha.
O outro golfinho soltou o mesmo barulho e Valdemar não precisou de tradução. Esta seria a sua eternidade.

Gostei, quero mais.